terça-feira, 9 de março de 2010

ETERNA SOLIDÃO

No pequeno espelho com cabo em madripérola que tirei de suas delicadas mãos, contemplo o vazio da minha existência. Repasso mentalmente meus últimos séculos, vividos em solidão. Fúria e desespero embaçam minha visão e chego a desejar também sentir a ponta de uma estaca abrindo caminho por minhas costelas.
Estou sozinho novamente. Seguro o corpo de Anna em meus braços, seu busto tingido de vermelho, seu rosto exangue, porém com uma feição suave. Cheguei tarde. O covarde que a aniquilou, o qual prostrei sem vida com um único golpe, jaz a um canto da cripta, seu rosto contraído numa expressão de horror.
Amaldiçoado seja, por ter trespassado tão lindo coração, incapaz de praticar qualquer ato de maldade. E maldito seja eu, mil vezes, por tê-la amado ao ponto de trazê-la a essa anti-vida abjeta onde circulo, atraindo a ira dessa corja de iletrados supersticiosos e irracionais.
Mas eles não perdem por esperar. Agora que minha amada se foi, a trégua acabou. Destruirei a todos, me valendo de todas as formas de tortura e humilhação imagináveis. Com nojo e satisfação sorverei de seus odiosos invólucros a minha subsistência, ceifando as vidas que alimentarão minha morte.
Por quase duzentos anos eu respeitei o contrato que celebrei com seus antepassados. No auge da tensão entre nossos mundos concordamos que eu não mais me alimentaria com sangue inocente. Em vez disso, seus condenados à morte seriam a mim enviados, como têm sido. E não são poucos. Invariavelmente tenho convidados que retenho em minha casa até que meu apetite desperte, o que tem sido raro.
Minha parte no pacto é secar seu sangue e enterrar sua carne, esquartejada, para não proliferar minha espécie. Desagradável que seja me sujeitar a essa dieta à base da escória dessa sociedade inferior, mantive minha palavra todo esse tempo.
Até agora. Doravante, viverão todos temendo minha sombra a espreitá-los, em uma vingança certeira e sem pressa de se consumar. O terror vai dar o tom de seus dias e a insônia vai devorar suas noites.
Apenas uma vez descumpri o combinado. Preferia não tê-lo feito, tamanha a angústia que se apodera de mim ao pensar na garota cheia de vida que conheci há alguns meses, e que agora esfria em meus braços, perfurada impiedosamente como um animal de caça, seus lindos olhos me fitando sem vida ou sobrevida, aguardando pela putrefação, destino desses miseráveis sugadores de leite.
Mesmo temendo uma represália por desrespeitar o trato, eu tinha esperança que eles não ousariam se insurgir contra mim. Não dessa forma. Frustração e ódio me queimam por dentro. Eles estão perdidos.
Foi durante as festividades pelo aniversário do condado que a conheci. Eu fora convidado, para meu espanto, pela primeira vez em muito tempo, a participar do baile anual, de grande tradição na região. Aceitei, receoso, em mais uma tentativa de mostrar boa vontade e me aproximar destas bestas imundas fedendo a nata e suor.
No baile, enquanto eu explicava a árvore genealógica do prefeito a um imbecil embriagado que me chamava de conde em tom de zombaria, Anna surgiu, descendo lenta e suavemente as escadas do salão. Seu longo vestido vermelho-sangue destacava a brancura de sua pele e o loiro de seus cabelos. Suas medidas perfeitas e fartas, realçadas pelos generosos decotes, me seduziam com promessas de noites de paixão e loucura.
Fiz de tudo para cortejá-la. Exibi conhecimento, desfilei riqueza, desenrolei cortesia e fineza ante seus jovens e verdes olhos. Ela pareceu verdadeiramente encantada, em nenhum momento demonstrando qualquer indício de medo ou inquietação.
Fazia tanto tempo desde que eu flertara pela última vez, que, a princípio, confesso, fiquei inseguro. Eu sabia que era impossível ela não me conhecer, e isso, aliado a uma garrafa de Chianti, foi me deixando confiante. Suas maneiras naturais e deliciosas, deixando à vista 32 pedaços do mais alvo marfim a cada gracejo meu, foram inebriando meus sentidos. Convidei-a para jantar em minha casa no dia seguinte. Ela aceitou.
Montes Carrapatos: é dessa forma irônica e deselegante que essa vara de suínos se refere à colina onde está situada minha mansão, construída há quase 600 anos por um jovem rei excêntrico. Os grandes muros de pedra, suas duas torres altas e esguias, e sua localização no ponto culminante da região, são motivo de sobra para fazer estalar as línguas do populacho.
Ela veio, como prometido, e me maravilhou com sua conversa animada, seu jeito ao mesmo tempo feminino e infantil, seus olhares vorazes. Ela me desejava tanto quanto eu a ela, estava claro. Após o jantar nos beijamos e fizemos amor.
Inúmeras vezes nas semanas seguintes ela retornou. Nos tornamos amantes ardentes e insaciáveis. Ela se interessava não apenas por minha virilidade, mas também por tudo que dizia respeito a mim e a meu passado.
Só discordávamos em um ponto. Ela queria se unir a mim na imortalidade, mas eu hesitava em trair o juramento feito ao povo do condado. Seus argumentos eram fortes: não tinha família, era órfã, tendo sido criada pelo irmão mais velho, que morrera há pouco tempo. Sozinha no mundo, dizia que agora tinha a mim.
Depois de três meses dessa maravilhosa cumplicidade, cedi a seus pedidos, ignorei o tratado celebrado com sua gente e a trouxe para meu mundo. Foi com euforia e uma ponta de orgulho que a vi abrir os olhos pela primeira vez após seu coração parar de bater e senti seus caninos salientes enquanto nos beijávamos.
No início ela hesitou em se alimentar, bebendo pouco sangue, e sempre sugado do meu próprio pescoço. Após alguns dias, porém, percebi seus olhares gulosos para as crianças da região. Senti que aquilo nos causaria problemas.
Desde então, no entanto, fomos felizes juntos. Eu evitava me ausentar muito tempo. Sentia que a solidão lhe fazia mal, pois se mostrava distante nos meus retornos. Isso durava poucos instantes, e logo ela voltava a ser carinhosa como antes. Ontem, porém, precisei viajar para tratar de um assunto urgente, sem imaginar o sofrimento que me aguardava na volta.
Adeus, minha doce companheira. Sentirei tanto a sua falta!
Com violência, atiro o espelho longe e o vidro se estilhaça. Arrasto pelos cabelos o animal que matou minha amada. Vou jogá-lo aos lobos, para que não restem nem os ossos de seu odioso cadáver. Mas, o que é esse papel caído a seu lado? Essa parece ser a letra de Anna...

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Meu amado Diogo,
Me perdoe por não ter ouvido seu conselho e ter agido por conta própria, enviando aquele convite ao ser das trevas, sabendo que você estaria fora na noite do baile. Não sou essa pessoa que tem evitado seu contato e ignorado seus apelos.
Você sabe o quanto o amo, e o quanto odeio a fera que executou a sentença que condenou meu amado irmão a uma morte tão indigna. Incumbi-me desta empresa para livrar o mundo deste monstro assassino, mas já não encontro forças para levar a cabo minha tarefa.
Pior, caí em minha própria armadilha, e acabei enfeitiçada pelo diabo, por mais nefasto e lascivo que ele me parecesse a princípio, me enchendo de asco e aflição sempre que se aproximava, com seus séculos de mau hálito disfarçados em boas maneiras, roupas elegantes e perfumes afrodiasíacos.
Pode ser algum poder hipnótico, ou apenas fraqueza minha, mas o fato é que me sinto anestesiada e feliz na presença do grande parasita, e são raros os momentos como este, quando ele está fora, onde consigo pensar com clareza. Sinto horror e vergonha por ter-me tornado algo semelhante a isso. Por ter matado crianças. Que Deus tenha piedade de minha alma!
Venha por favor esta noite à velha cripta, munido dos instrumentos necessários para minha libertação deste jugo odiento. Por nosso amor, livre-me desta maldição, antes que eu afunde ainda mais na lama do inferno. Quero uma última vez observar meu reflexo no espelho.
Eternamente sua,
Anna

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Deixo cair a carta, desnorteado e incrédulo.
Pela primeira vez desde que atingi a imortalidade, sinto grossas e quentes lágrimas escorrendo pelo meu rosto, com seu sabor levemente salgado, há tanto tempo esquecido, vindo beijar meus lábios.

BRUTALITY SHOW

A expectativa é imensa! A previsão é de quase 4 bilhões de pessoas conectadas esta noite. As tentativas feitas pelas autoridades para impedir o programa de ir ao ar ainda preocupam, mas a confiança dos fanáticos é maior. Apesar de inúmeras prisões terem sido efetuadas, e algumas execuções autorizadas em caráter liminar, todos sabem da capacidade dos patrocinadores em corromper o poder central, em nome da liberdade de entretenimento.
Eventos dessa magnitude movimentam milhões de globals, moeda oficial da Comunidade Econômica Mundial, e são levados a êxito através de pequenos subterfúgios jurídicos temporários. Licenças são expedidas de última hora, com base numa antiga jurisprudência americana dos tempos do vaudeville, garantindo o espetáculo. Quando ocorre a cassação dessas ordens, um ou dois dias depois, o objeto já se perdeu.
A programação começa com um show estonteante da banda sensação do momento: os TeenKillers, turma de garotos que se juntou há 3 meses, e estourou instantaneamente em todos as mídias, levando bilhões de adolescentes de todos os sexos à loucura. Eles são recebidos na arena por antigos membros dos BeautyToys, a mania que contagiou o universo durante boa parte do ano de 2053, mas que encerrou tragicamente suas atividades, após um dos componentes acusar o empresário da banda de forçá-los a sessões de orgia assistidas por um seleto grupo de fãs abastados, sem o devido pagamento dos valores combinados.
Os TeenKillers são ovacionados após o seu número, onde desenham com laser, num grande painel holgoráfico, um imenso coração com o nome dos integrantes, que em seguida se transforma num falo gigante, que dança e canta um de seus maiores sucessos. Em seguida os garotos executam o hino mundial, para comoção geral.
A histeria começa a assumir ares preocupantes quando um dos killers afirma estar feliz com seu novo corte de cabelo e muito orgulhoso, embora de luto, por saber que duas garotas de Montreal cometeram suicídio para provar seu amor pela banda. Fãs mais exaltadas acabam sendo contidas apenas com injeções letais. Mas nada parece capaz de diminuir o frênesi que impregna a atmosfera do local.
O wall-projector passa então a mostrar alguns momentos de “Full Circle”, reality show que teve seu ápice na última semana com o nascimento do menino Eksnew. Seus pais foram acompanhados 24 horas por dia desde o jantar em que se conheceram, poucas horas antes da concepção. O casal de sortudos foi escolhido entre bilhões de profiles: ela, uma estudante adolescente de Pequim; ele, um corretor de seguros viúvo de Seattle.
Por votação, o público definiu desde detalhes rotineiros da vida do casal, como cardápio e horários de refeições e relações, até o sexo e o nome da criança, em momentos que atingiram picos de audiência fantásticos. O patrocinador anuncia entusiasmado que o garoto passa bem e que o retorno em massa da audiência propiciou a renovação do contrato, garantindo o programa até o início da idade escolar de Eks - como o garoto ficou conhecido - e a briga judicial pela guarda do menino, após o término do confinamento. Caso o casal continue a união após o fim do programa, serão obrigados a devolver todos os prêmios recebidos, além das perdas e danos por lucros cessantes.
O apresentador surge para informar que todos os recordes de audiência foram batidos, para delírio do público presente à arena. Está na hora da grande atração da noite. O palco começa a se abrir, revelando o campo de batalha e os dois mega telões, ao lado dos quais os líderes das duas equipes estão posicionados para a partida de vídeo game mais aguardada de todos os tempos.
Depois de diversas fases eliminatórias, a final do torneio Battle for Freedom reúne hoje apenas os melhores, os excelentes times de Moscou e Bogotá. Formados por prisioneiros de alta periculosidade sentenciados a morte, e comandados por gênios da informática cumprindo pena por crimes eletrônicos, os dois lados buscam, após meses de treinamento árduo e combates exaustivos, o grande prêmio: a liberdade, exclusiva para a equipe sobrevivente.
Resgatados de seus presídios pelo patrocinador do evento, eles jogam hoje a chance de uma nova vida, com direito a novos documentos e impressões digitais a prova de detectores, além de um valor milionário, não divulgado. O local do evento é mantido em sigilo absoluto, sendo que apenas alguns milhares de privilegiados tiveram acesso à arena, sendo conduzidos por aeronaves particulares, totalmente fechadas para evitar qualquer reconhecimento da região.
O preço dos ingressos gira na casa de dezenas de milhares de globals, mas não é isso que move os organizadores, e sim a presença de público real para garantir mais vibração à transmissão. Ademais, é sabido nos bastidores que o dinheiro gasto pelos magnatas com drogas e prostituição supera em muitas vezes o valor arrecadado com os ingressos.
As regras do jogo são simples: ele só termina quando todos os integrantes da equipe rival estiverem fora de combate e o time vencedor capturar a bandeira adversária. As armas utilizadas são as mesmas para os dois lados, incluindo o mais moderno em tecnologia de guerrilha. Munição e kits de alimentos e primeiros socorros estão espalhados por pontos estratégicos, escondidos entre armadilhas e explosivos, para garantir que os combatentes só os procurem em casos realmente extremos.
Os jogadores têm pequenos chips de comando implantados em seus cérebros, permitindo o controle da estratégia ao líder da equipe, que tem no monitor a visão de todo o campo de batalha por dezenas de câmeras. Se um jogador tenta desobedecer às ordens do líder, este pode forçá-lo através de descargas elétricas de baixa intensidade, e, em último caso, utilizá-lo como isca para atrair o inimigo e ganhar terreno. Esses sacrifícios, chamados gambitos, não são raros, dado o temperamento agressivo dos competidores.
Cada equipe é formada por onze integrantes, sendo que, durante a competição, até onze novas inscrições são aceitas, por conta das baixas ocorridas durante as partidas. O time da Colômbia já não tem mais nenhum membro original além de seu líder, e ainda assim veio para a grande final com apenas 8 jogadores. Os russos, grande favoritos, por outro lado, tem ainda 7 atletas dentre aqueles que iniciaram o primeiro jogo. E, das três substituições feitas, duas aconteceram apenas após a semi-final, disputada contra o fortíssimo time do Rio de Janeiro.
A partida é iniciada com a explosão de uma granada, atada ao pescoço de um cordeiro, no círculo central, uma tradição de tempos menos civilizados, que ninguém mais sabe dizer ao certo a explicação. Uns dizem que os jogadores do antigo leste europeu se excitavam com o cheiro de sangue inocente. Outros alegam que a carne era o troféu das primeiras disputas do gênero, sendo a execução do banquete privilégio do time vencedor, costume que foi se desvirtuando com o passar dos anos.
Agora o público do mundo todo está atento ao campo de batalha e ao placar, já que muitas manobras são tão sucintas e outras tão explosivas, que apenas pelo replay é possível acompanhar todas as baixas. Torcedores de ambos os lados espalhados pelo universo mandam mensagens online que podem ser utilizadas pelos líderes como forma de incentivo ou mesmo tática de combate.
O time russo está mais entrosado e bem preparado, mas os colombianos estão acostumados ao ambiente simulado escolhido para essa final, parecido com uma floresta tropical. Assim, o jogo é parelho, com os dois líderes a princípio realizando apenas manobras de estudo. Um jogo de xadrez entre grandes mestres não seria tão cerebralmente analisado.
Após algumas horas, o jogo é interrompido com gás lacrimogênio, para a apresentação das mensagens dos patrocinadores, além de comentários e dos melhores momentos. Apesar da vantagem numérica inicial dos russos, os sulamericanos equilibraram a disputa com suas táticas de guerrilha na selva, e restam apenas seis competidores para cada lado.
O final da partida promete ser eletrizante...

ÂNGELA

Eu estava na pior fase da minha vida quando vim morar em Itu. Era o início do ano de 2004. Alguns meses antes, uma doença rara levou meu filho. A impossibilidade de lidar com isso levou minha esposa a pedir o divórcio. O que me levou a uma forte depressão. Que levou meu emprego.
Hoje sei que quando alguém está perdido numa tormenta, não consegue ver as coisas em perspectiva. Tudo parece sem saída. Cabe a alguém de fora, que se importe, ajudar. Mas eu não tinha ninguém que se importasse para me dizer que tudo teria que melhorar. E desisti de viver.
Entre uma notícia ruim e outra pior, talvez por instinto de sobrevivência, acabei obrigado a mudar de ares. Surgiu uma oportunidade de emprego em Itu, que aceitei sem pensar muito. O salário não era lá essas coisas e não digo que tivesse um bom pressentimento quanto ao futuro, porque eu não via nada de positivo à minha frente. Eu não tinha perspectivas. Apenas disse sim.
Cheguei sem saber quase nada da histórica cidade que mudaria minha vida. Nos primeiros dias, totalmente envolvido em meus revezes, eu saía nos intervalos do novo trabalho para conhecer seus caminhos e me esquecer dos meus. Perambulava por suas praças, inalava seus dias passados, me entorpecia em sua calmaria, enveredava por ruas estreitas de paralelepípedos. Caminhava sem direção, nada importava mais. A solidão absoluta é um sinal de liberdade, mas também de tristeza.
Um dia, na segunda semana dessa nova vida, sonambulando pelo Centro Histórico, eu a vi pela primeira vez. No jardim da Praça do Carmo ela brincava, alheia ao mundo a sua volta. Devia ter uns 7 anos, cabelos lisos de um castanho claro, quase loiro, olhos grandes e inteligentes. Segurava algumas bonecas, que examinava com um estetoscópio de plástico cor-de-rosa, simulando uma animada conversa com suas pacientes, alternando vozes e entonações.
Seu entusiasmo infantil me despertou de minha letargia. Sentei num banco próximo, apenas para vê-la brincar. Havia esquecido, desde a morte de meu filho, o quando gostava de crianças. São a espécie humana em seu estado mais puro, o avesso da decadência representada pela idade adulta. Olhei para os lados, procurando achar seus pais, tios ou avós, mas ela aparentava estar só.
Quando indaguei dela porque não brincava com outras crianças, ela deu um suspiro, como se reunisse enorme paciência para responder à pergunta de um mentecapto, e disse:
- Porque não tem mais ninguém aqui, não tá vendo?
Não pude reprimir uma sonora gargalhada diante dessa resposta, mas insisti:
- Onde estão seus amigos?
Ela deu de ombros e afagou um vira-lata que por ali passava, com seu rabinho balançando, a implorar por comida ou carinho na barriga. De preferência pelos dois. Então, virou prá mim e disse:
- Quando fico sozinha, eu continuo a brincar. Depois alguma criança aparece e faz amizade comigo. Eu fico muito cansada, às vezes, sabe? Mas aí invento outra coisa, e fico alegre de novo.
Aquelas palavras ingênuas e tão sábias me deixaram atordoado. Fui me afastando, ainda intrigado por uma criança tão pequena estar sozinha. Depois de alguns passos, resolvi que aquilo não estava certo e voltei para perto dela. Já ia protestar sobre a situação, mas ela me puxou pela manga, me forçando a chegar mais perto de sua pequenez, me deu um abraço apertado e disse:
- Pode deixar que eu cuido do seu dodói. Venha aqui quando estiver triste. Agora preciso ir.
Dizendo isso, juntou as mãozinhas e as colocou sobre o coração. Sorriu e saiu correndo para o outro lado da praça, animada e totalmente esquecida da minha presença. Fui andando com uma sensação estranha de ter acordado de um sonho bom. E senti meu coração leve, renovado.
Acordei na manhã seguinte e nas próximas cada vez um pouco mais esperançoso. Era como se a cada dia eu fosse deixando um pouco de peso para trás, me sentindo mais leve.
Várias vezes, naqueles meses, encontrei a pequenina. Em diversos lugares: na Praça da Matriz, em um dos lindos campings da cidade, na Fazenda do Chocolate. Bastava eu ter uma recaída, me sentir desencorajado. Então eu saía para caminhar ou conhecer algum novo lugar e me deparava com a minha amiga especial. E a cada encontro conversávamos um pouco mais.
Descobri que se chamava Ângela e que adorava os picolés imensos que são vendidos no centro de Itu. Ela me contava, com seu jeito infantil, sobre todas as coisas que conhecia e de como a todos os problemas superava com sua determinação e paixão pela vida e pelas pessoas e animais. Fui aprendendo sobre Itu e seu povo hospitaleiro, seus lugares e curiosidades. Era admirável o enorme conhecimento que a pequerrucha tinha da cidade, de sua história e de sua gente.
Uma noite, durante esse meu período de cura, eu estava andando pelo shopping quando reparei em uma moça que escolhia sapatos numa vitrine, gesticulando com a vendedora, extrovertidamente. Era magra, alta, com longos cabelos castanhos, pele dourada e o rosto esculpido a mão por algum mestre. Seu charme e simpatia me encantaram, e passei a admirá-la, depois de meses sem reparar nas mulheres. Ela notou meu olhar, sorriu de um jeito malicioso, e disse:
- Também está querendo comprar sapatos, moço bonito que não tira os olhos de mim?
Fiquei vermelho e já ia dando uma desculpa qualquer, mas ela gargalhou e continou:
- Não precisa se explicar, não. Eu sei que sou irresistível. Prazer, meu nome é Carla. Porque você não desfaz essa cara de bobo e me convida para um chopp? Eu tô morreeeeeendo de calor!
Para encurtar uma longa história, a convidei para o chopp e também para jantar. Sua conversa era animada e seu jeito realmente irresistível. E, dali em diante, passamos a nos ver constantemente. Fiquei sabendo que ela tinha acabado de se separar e estava fazendo compras como terapia. Mulher inteligente, decidida, mas cheia de problemas a resolver. Só que com um approach muito diferente do meu, sempre otimista e alto astral, salvo quando as coisas ficavam realmente pesadas. Nessas ocasiões ela desabava por alguns momentos, mas logo estava de volta à luta. Como era de se esperar, me apaixonei perdidamente. Para minha surpresa, fui correspondido.
Na semana em que começamos a namorar, eu vi a pequena Ângela pela última vez. Estava sentado em frente à doceria Senzala, comendo um daqueles canudinhos de côco que acabam com a dieta de qualquer um, quando ela passou pela praça em frente, correndo alegremente, como sempre. Gritei seu nome e fui ao seu encontro. Ela pulou no meu colo, se enlaçou no meu pescoço num abraço apertado, e disse bem baixinho no meu ouvido:
- Vou sentir saudade de você, tio. Fica com Deus e não esquece de mim, viu!?
Fez força com os bracinhos para descer do meu colo, e saiu saltitando para longe.
Percebi, naquele momento, que nunca mais a veria. Porque eu já estava curado do mal que destruía minha alma. E porque a minha mini enfermeira já tinha cumprido sua missão de me trazer de volta ao mundo dos que lutam, dos esperançosos, daqueles que têm planos e sonhos. Enfim, daqueles para quem o futuro tem valor e representa pelo menos a chance de um novo começo.
Desde então, tenho me saído razoavelmente bem na vida profissional, comecei a cultivar hobbies que sempre tive vontade, mas nunca me sobrou tempo, e comprei uma casa, no centro de Itu. Casei com Carla, e temos tantas afinidades que é até difícil de acreditar. Somos muito felizes.
Na semana passada, o ultrassom nos contou que vai ser uma menina. Decidimos que ela se chamará Ângela, em homenagem ao anjinho que tratou do meu coração e da minha alma.
E que me transformou em um legítimo cidadão ituano.

ESTRELA CADENTE

Sentir-se só numa cidade com mais de 11 milhões de outras almas é uma experiência bastante desagradável. Traz uma sensação de incompetência muito grande. Imaginar a enormidade de pessoas procurando por companhia e não ter com quem conversar é muito frustrante. Quanto maior a densidade demográfica de uma grande cidade, mais avassalador é o sofrimento de uma alma que amarga sua incapacidade para compartilhar.
Semana passada, ao anoitecer, olhando pela sacada do meu apartamento, eu observava as luzes das grandes torres de aglomeração humana se acendendo, uma a uma, tão próximas quanto estrelas em galáxias desconhecidas. Quantos mundos inexplorados, quantos mistérios! Segredos guardados de tantas vidas... será que alguém pensaria o mesmo de mim naquele momento?
Cada uma dessas estrelas sempre representou para mim um beduíno que encontrou o seu oásis depois de viajar por um deserto onde os grãos de areia, incontáveis, infinitos, têm faróis e buzinas e carregam consigo outro viajante solitário pelo Saara de gentes. Chegar em seu bunker, estar em casa, é a recompensa por mais um dia de trabalho. Fazer brilhar as estrelas na constelação de São Paulo.
Quem vem de fora, como eu, sabe de seus problemas, anseia por suas dificuldades. Não se busca o sonho americano, é muito mais a necessidade do pesadelo paulistano. É sentir-se vivo, enfrentar adversidades, sobreviver às armadilhas diárias e triunfar, continuando a cintilar todas as noites no céu da capital, fazer parte dessa história.
Essa velha e gorda, simpática e desajeitada meretriz, recebe todos os dias seus garotos, inexperientes forasteiros vindos dos mais diferentes lugares. A todos abre seus braços flácidos, nada cobrando pelas lições de vida. Devora com sofreguidão seus sonhos, se alimenta de suas esperanças, entregando depois ao mundo homens prontos para o desafio da metrópole, essa dura realidade a que só resistem os fortes, os preparados, os que aprenderam a diferença entre sonho e ilusão. Os demais, os fracos, ficam pelo caminho. Não há tempo para lamentar por eles.
Pensei então será que sou hoje tão solitário quanto no dia em que cheguei a esse mar de estrelas? Ou o fato de hoje eu ser também uma estrela representa a evolução, os anos de aprendizado com a prostituta sagrada? Difícil de aceitar, mas é bastante lógico pensar que para os novos candidatos a estrela, minha história seja de sucesso. Levando-se em conta a miséria material de onde surgi, é mesmo um sucesso estrondoso. Mas por que então me sentia esse completo fracasso de ser humano?
Em muito pontos, me encontro hoje inclusive em situação inferior à do garoto pobre que chegou à capital. Até mesmo porque não sou mais um garoto e, portanto, não tenho mais a enorme vantagem de ter o caminho a percorrer. Acredito que o fim da estrada seria o mesmo, mas isso chega a ser insignificante. O que importa é o caminho. O caminho é obrigatório. O resultado é um mero detalhe. Então é um jogo sem chance de vitória.
Quando eu desci do ônibus na rodoviária do Tietê, há tantos anos, minha vida recomeçou. Tudo era grande demais, é como se eu ouvisse o grande russo me dizendo a todo instante: você é um piolho! A multidão circulava apressada, em dissonante sifonia, me deixando tonto, parecendo um imenso formigueiro. O frio, que eu senti pela primeira vez na vida, me cortou a carne, atingiu meus ossos, congelou minha alma. Nunca depois daquele dia eu voltei a sentir um frio como aquele.
Semiconsciente dos acontecimentos, fui sendo levado em direção ao meu destino. Da rodoviária ao metrô, aparentemente em direção ao centro da terra, e então de volta à superfície, entregue ao caos de um mundo futurista com visual retrô. A cada passo eu experimentava um misto de paura e liberdade absoluta. Um frêmito percorria minhas veias, e aquilo me excitava, mas ao mesmo tempo eu sentia no íntimo que cada metro adiante tornaria mais difícil achar o caminho de volta para um Teseu sem Ariadne ou novelo, com apenas uns poucos trocados no bolso e uma mala de couro que nem mesmo estava forrada como a do poeta, embora também cheirasse mal.
Mala que continha meia dúzia de roupas, algumas fotos e um livrinho preto, sem os meus poemas, mas com alguns telefones de contato e endereços. Era tudo que eu tinha, além de um milhão de sonhos, lembranças e esperanças. O que não é pouco, de forma alguma.
Hoje percebo que não cheguei naquele dia pensando que seria fácil. Sabia justamente que era mais provável dar errado, e que se desse certo, não significava que eu seria feliz. Estava mesmo preparado para ser infeliz. Tudo que eu queria era viver, fazer parte do lugar onde as coisas acontecem. Era preciso tentar. Mudar. E nada melhor do que recomeçar do zero.
E eu recomecei, do zero. Do metrô a uma pensão, de lá a um bico, a um emprego, a uma promoção, a um casamento, à independência financeira, a um divórcio dolorido, do qual ainda não me recuperei.
Acabei perdendo a queda de braço com a grande cidade, e, assim como cheguei, fui embora: uma mistura de medo e libertação, em silêncio sepulcral e meio tonto, anestesiado. A diferença era na bagagem. Tudo que eu conquistara e tudo que eu aprendera pesavam agora toneladas, mesmo que eu me sentisse então muito mais vazio do que no começo da jornada. Tudo era cansaço.
Se a vida na capital é uma coleção de problemas, acostuma-mo-nos a eles depois de algum tempo, e acabamos mesmo por necessitar disso, porque as coisas que nos fazem mal, nos fazem um mal tão grande que nos viciam o corpo e a alma, criando uma dependência quase impossível de ser superada. Assim, depois de algum tempo, acabei voltando para os braços da grande meretriz. Dessa vez como um antigo conhecido. Relembramos nossos velhos tempos com grande satisfação. Porque quando se recorda dias passados, a tendência é que eles pareçam melhores do que jamais foram ou poderiam ter sido.
Temos saudade do que fomos e do que vivemos, simplesmente porque então éramos mais jovens e cheios de planos, e não necessariamente porque tenhamos sido mais felizes. É preciso ter objetivos para resistir à realidade. Um ser humano sem projetos e esperanças é um cadáver ambulante. Vive pelo hoje, não faz falta ou diferença. E morre sem deixar saudade, sem que se pense no quanto deixou por fazer.
Sofre menos o imbecil que vive de planos de papel, os quais sabe que jamais poderá realizar, do que o sábio que permanece firme sobre o chão gelado da realidade. Um passado de erros podemos lamentar ou esquecer, um presente sem sentido podemos tentar alterar ou aceitar como temporário, mas um futuro sem perspectivas é insuportável. Corrói a tudo, acaba com qualquer sanidade. Destrói a alma humana de todas as formas.
Foi com esse estado de espírito, numa dessas fases de viver sem esperança, que eu vi, semana passada, uma quadra à frente do meu apartamento e muitos andares acima, da cobertura do prédio mais caro do bairro, a estrela cadente. Desceu como um raio perante meus olhos assustados, e me pareceu sentir sua necessidade de chegar com urgência ao chão, acabar com toda a dor, apagar de vez com aquela luz sem calor.
Por um instante, eu me senti parte daquela vida, integrante daquela história, conhecedor de tudo que levou àquele desfecho. Esse sentimento, porém, não durou mais que uma fração de segundo, e antes mesmo que a estrela cadente terminasse sua última viagem, eu fiz o meu pedido.
Estrela amiga, sei o que te faltou, aquilo que é preciso para continuar vivendo, para fazer os planos necessários à manutenção da esperança, para mudar o que não se aguenta mais, acabar com uma vida de erros e sem perspectivas de evolução espiritual: dai-me FORÇA! Pois só os fortes sobrevivem.
A noite de São Paulo me observou em seu silêncio ensurdecedor. Estou acostumado. Tudo grita e estremece, mas nada é comigo. Era o seu sincero incentivo, em forma de deboche e provocação.
Lancei-lhe um sorriso irônico pelos ares como resposta.
Esta estrela continuará a brilhar.

MESMO QUE A MORTE NOS SEPARE

Quando vi Fernanda sentada confortavelmente em nosso antigo sofá de couro marrom, me olhando de uma forma tão curiosa, como se me visse, verdadeiramente, pela primeira vez, recebi uma descarga de adrenalina tão forte que senti estremecer minha alma. Tentei falar, mas senti dificuldade em fazer as palavras cruzarem minha garganta, e um misto de medo e espanto dominou meus pensamentos.
Ela vestia a camisola champagne que eu gostava tanto, a mesma camisola de quando... e, no entanto, estava mais bonita, com uma maquiagem sóbria sobre seu rosto claro de traços felinos, um tom de pele mais saudável do que em muitos anos, as curvas do corpo melhor delineadas do que eu jamais me lembrava ter visto e um brilho sagaz no olhar, que me indicava a diversão que ela sentia em perceber meu embaraço. Era como se, ao constatar minha mente tentando processar tal informação em frações de segundo, isso trouxesse a ela a concretização de um desejo.
Um instante a seguir, meus sentimentos começaram a caminhar por conta própria, alheios à minha vontade, quase que indiferentes à minha própria presença, me proporcionando uma série de imagens de momentos que passamos juntos, acompanhadas sempre de um cheiro ou uma sensação que marcava cada uma das fases de um longo relacionamento... é o meu jeito de registrar momentos: alguns tem um cheiro doce, outros a lembrança de uma música especial, ou a lembrança de estar me sentindo feliz, ansioso, apreensivo por enfrentar alguma coisa nova... e não pude reprimir um sincero “como eu queria te ver” que surgiu espontâneo demais mesmo para alguém na minha situação.
Um sorriso pareceu brincar nos lábios dela, aqueles mesmos lábios que aprendi a amar e a temer, principalmente quando se mostravam finos como naquele momento, mas não deixei de notar que ela gostou de saber disso, apesar de tudo... porque vaidosa ela nunca deixou de ser, independente dos últimos acontecimentos, sempre fez questão de saber o quanto eu continuava louco por ela.
- É a última coisa que eu esperava ouvir, Tiago – disse, sem jeito, revelando uma ponta de rancor.
Eu nunca fora um espiritualista. Pelo contrário, metade da minha vida passei defendendo a ideia de que tudo acaba aqui, neste mundo, com a chegada infalível da última batida desses motores tão frágeis que trazemos dentro do peito. Toda minha convicção se rebelava contra esse reencontro inusitado na madrugada fria, dentro da nossa – agora tão estranha à minha presença – sala de jantar. Os quadros na parede, os discos na estante, até mesmo o tom azul de uma das paredes, fragmentos de um momento de calmaria em nossas vidas. Como a paz se traduz em futilidades, pensei, olhando meu velho tabuleiro de xadrez, ainda arrumado numa defesa francesa, uma das minhas manias. O violão no canto devia estar ainda afinado, afinal não se passara tanto tempo assim desde aquilo...
E, no entanto, não posso negar que me senti muito alegre em revê-la! Percebi imediatamente que, independente de tudo... de tudo que acontecera... Fernanda foi a mulher que sempre amei, que mais perfeitamente representou aquilo que as pessoas chamam de cara metade. Oito anos de casamento serviram para muitas coisas, principalmente para aniquilar sem piedade qualquer espécie de gentileza, de cortesia, entre nós. Todo aquela minha educação que a cativou quando nos conhecemos, toda aquela sensualidade calculada em palavras de duplo sentido que me alucinou quando começamos a flertar, tudo havia se transformado em falsa harmonia. Quanto eu não daria pela cumplicidade do pecado que uma vez compartilhamos, no lugar dessa maldita intimidade que acaba com o romantismo e transforma amantes em sócios.
Mas, ali, tendo a inesperada oportunidade de revê-la depois do vendaval que devastou nosso mundo, que nos afastou ao ponto de não ser mais possível dividirmos um jantar sem que houvesse uma discussão, e que culminou naquela fatídica noite, onde fomos separados da única forma que a igreja entende ser justificável, eu tive que admitir: ela foi a única pessoa que eu amei de verdade. Outras passaram pela minha vida antes e depois dela, algumas deixaram marcas e outras não deixaram nada, nem a lembrança de um nome, nem uma memória, um cheiro, uma cor, uma emoção. Surgiram e desapareceram como assombrações. Outras ainda levaram algo. A maioria não levou nada.
Estava em meio a esse turbilhão de sensações, quando ela resolveu reagir:
- O que você veio fazer aqui? Será que é necessário ainda mais para nos separar?
- Olha, eu não quero ser indelicado, minha cara, mas essa aqui é a minha casa, também. E se vamos ser obrigados a conviver, mesmo após separados pela morte, talvez seja melhor um pouco mais de boa educação.
- Essa deixou de ser sua casa, Tiago, no dia em que você trouxe uma vagabunda para passar a noite com você, na nossa cama.
Ela fez aquela cara de asco que eu conhecia tão bem.
- Eu sei que eu errei, mas minha vida está aqui, tudo que é meu: meus livros, discos, filmes, meu tabuleiro, meu violão, você...
Ela me interrompeu, furiosa:
- Eu não sou sua! Pelo menos disso eu já estou livre!
- Então aconselho que você pegue suas coisas e vá embora, querida. Porque eu não tenho nenhuma intenção de sair daqui.
- Eu não acredito que estou tendo essa discussão com VOCÊ a essa hora da madrugada.
- Bom, podemos deixar isso para uma hora mais apropriada. Estou mesmo cansado.
- Pois vá descansar, querido.
Foi nessa hora que reparei que ela não estava mais usando aliança. Então até isso era diferente agora. Resolvi que discutir com ela naquele momento não levaria a nada. Ela sempre fora mais teimosa que jumento quando empaca, não mudava de opinião por nada nesse mundo.
- Ok, Fê. Vou dormir fora essa noite. Espero que amanhã você esteja mais razoável.
- Vai sonhando. Aconselho você a seguir seu caminho e me deixar em paz, para sempre.
Saí para a noite, que me pareceu excepcionalmente triste. As pessoas na rua, totalmente indiferentes ao meu sofrimento, seguiam seu caminho pela grande cidade. Algumas olhando pro chão. A maioria olhando para dentro de si próprias. Percebi o quanto somos todos solitários nesse mundo, onde companhia é uma invenção patética, para esquecermos que não temos nada nem ninguém além de nossa própria insignificância. Mas quem era eu para dizer isso. Nunca pude ficar sem companhia, sem Fernanda ou sem uma amante.
Reparei então que aquela luz continua ali na esquina. Desde que tudo acontecera, eu me sentia atraído por aquele brilho, mas o evitava, por tudo quanto havia lido a respeito. Não, eu não seguirei aquele caminho. Sem chance. Eu não estou pronto. Em vez disso, sentei num banco do meu boteco favorito, peguei papel e caneta, e comecei a escrever:
“Quando vi Fernanda sentada confortavelmente...”
Eu sei que errei. Eu sei que não deveria tê-la traído. Não dentro de nossa casa, em nossa própria cama. Apesar de não acreditar em fidelidade, eu não a culpo por ter ficado magoada.
Depois de alguns dias vagando e sendo acossado por “amigos” interessados a me mostrar o caminho, eu consegui voltar até ela. Até nossa casa.
Não. Eu não a culpo. Nem pelo rancor que nutriu, nem pelo veneno que utilizou para extravazar esse rancor.
Nem pela falsidade! Por ter chorado amargamente minha morte perante os amigos, os parentes, perante a polícia. Nem pelo desmaio no velório, pela ceninha em frente ao caixão.
Ou por ter escapado sem punição, após ter colocado fim a minha vida.
A tudo isso eu entendo e perdoo.
Eu sei como são as mulheres. Não fui um santo em vida, mas sempre entendi as fraquezas do ser humano. Entendo ela ter me negado o direito de continuar vivendo, após a humilhação que a fiz sentir.
Mas uma coisa ela não poderá me negar.
Eu gosto da vida e não estou pronto para seguir meu caminho.
E, principalmente, eu não quero e não posso para ficar longe de Fernanda, a mulher que eu amei. Que eu amo.
Mesmo que a morte nos separe...