terça-feira, 9 de março de 2010

ÂNGELA

Eu estava na pior fase da minha vida quando vim morar em Itu. Era o início do ano de 2004. Alguns meses antes, uma doença rara levou meu filho. A impossibilidade de lidar com isso levou minha esposa a pedir o divórcio. O que me levou a uma forte depressão. Que levou meu emprego.
Hoje sei que quando alguém está perdido numa tormenta, não consegue ver as coisas em perspectiva. Tudo parece sem saída. Cabe a alguém de fora, que se importe, ajudar. Mas eu não tinha ninguém que se importasse para me dizer que tudo teria que melhorar. E desisti de viver.
Entre uma notícia ruim e outra pior, talvez por instinto de sobrevivência, acabei obrigado a mudar de ares. Surgiu uma oportunidade de emprego em Itu, que aceitei sem pensar muito. O salário não era lá essas coisas e não digo que tivesse um bom pressentimento quanto ao futuro, porque eu não via nada de positivo à minha frente. Eu não tinha perspectivas. Apenas disse sim.
Cheguei sem saber quase nada da histórica cidade que mudaria minha vida. Nos primeiros dias, totalmente envolvido em meus revezes, eu saía nos intervalos do novo trabalho para conhecer seus caminhos e me esquecer dos meus. Perambulava por suas praças, inalava seus dias passados, me entorpecia em sua calmaria, enveredava por ruas estreitas de paralelepípedos. Caminhava sem direção, nada importava mais. A solidão absoluta é um sinal de liberdade, mas também de tristeza.
Um dia, na segunda semana dessa nova vida, sonambulando pelo Centro Histórico, eu a vi pela primeira vez. No jardim da Praça do Carmo ela brincava, alheia ao mundo a sua volta. Devia ter uns 7 anos, cabelos lisos de um castanho claro, quase loiro, olhos grandes e inteligentes. Segurava algumas bonecas, que examinava com um estetoscópio de plástico cor-de-rosa, simulando uma animada conversa com suas pacientes, alternando vozes e entonações.
Seu entusiasmo infantil me despertou de minha letargia. Sentei num banco próximo, apenas para vê-la brincar. Havia esquecido, desde a morte de meu filho, o quando gostava de crianças. São a espécie humana em seu estado mais puro, o avesso da decadência representada pela idade adulta. Olhei para os lados, procurando achar seus pais, tios ou avós, mas ela aparentava estar só.
Quando indaguei dela porque não brincava com outras crianças, ela deu um suspiro, como se reunisse enorme paciência para responder à pergunta de um mentecapto, e disse:
- Porque não tem mais ninguém aqui, não tá vendo?
Não pude reprimir uma sonora gargalhada diante dessa resposta, mas insisti:
- Onde estão seus amigos?
Ela deu de ombros e afagou um vira-lata que por ali passava, com seu rabinho balançando, a implorar por comida ou carinho na barriga. De preferência pelos dois. Então, virou prá mim e disse:
- Quando fico sozinha, eu continuo a brincar. Depois alguma criança aparece e faz amizade comigo. Eu fico muito cansada, às vezes, sabe? Mas aí invento outra coisa, e fico alegre de novo.
Aquelas palavras ingênuas e tão sábias me deixaram atordoado. Fui me afastando, ainda intrigado por uma criança tão pequena estar sozinha. Depois de alguns passos, resolvi que aquilo não estava certo e voltei para perto dela. Já ia protestar sobre a situação, mas ela me puxou pela manga, me forçando a chegar mais perto de sua pequenez, me deu um abraço apertado e disse:
- Pode deixar que eu cuido do seu dodói. Venha aqui quando estiver triste. Agora preciso ir.
Dizendo isso, juntou as mãozinhas e as colocou sobre o coração. Sorriu e saiu correndo para o outro lado da praça, animada e totalmente esquecida da minha presença. Fui andando com uma sensação estranha de ter acordado de um sonho bom. E senti meu coração leve, renovado.
Acordei na manhã seguinte e nas próximas cada vez um pouco mais esperançoso. Era como se a cada dia eu fosse deixando um pouco de peso para trás, me sentindo mais leve.
Várias vezes, naqueles meses, encontrei a pequenina. Em diversos lugares: na Praça da Matriz, em um dos lindos campings da cidade, na Fazenda do Chocolate. Bastava eu ter uma recaída, me sentir desencorajado. Então eu saía para caminhar ou conhecer algum novo lugar e me deparava com a minha amiga especial. E a cada encontro conversávamos um pouco mais.
Descobri que se chamava Ângela e que adorava os picolés imensos que são vendidos no centro de Itu. Ela me contava, com seu jeito infantil, sobre todas as coisas que conhecia e de como a todos os problemas superava com sua determinação e paixão pela vida e pelas pessoas e animais. Fui aprendendo sobre Itu e seu povo hospitaleiro, seus lugares e curiosidades. Era admirável o enorme conhecimento que a pequerrucha tinha da cidade, de sua história e de sua gente.
Uma noite, durante esse meu período de cura, eu estava andando pelo shopping quando reparei em uma moça que escolhia sapatos numa vitrine, gesticulando com a vendedora, extrovertidamente. Era magra, alta, com longos cabelos castanhos, pele dourada e o rosto esculpido a mão por algum mestre. Seu charme e simpatia me encantaram, e passei a admirá-la, depois de meses sem reparar nas mulheres. Ela notou meu olhar, sorriu de um jeito malicioso, e disse:
- Também está querendo comprar sapatos, moço bonito que não tira os olhos de mim?
Fiquei vermelho e já ia dando uma desculpa qualquer, mas ela gargalhou e continou:
- Não precisa se explicar, não. Eu sei que sou irresistível. Prazer, meu nome é Carla. Porque você não desfaz essa cara de bobo e me convida para um chopp? Eu tô morreeeeeendo de calor!
Para encurtar uma longa história, a convidei para o chopp e também para jantar. Sua conversa era animada e seu jeito realmente irresistível. E, dali em diante, passamos a nos ver constantemente. Fiquei sabendo que ela tinha acabado de se separar e estava fazendo compras como terapia. Mulher inteligente, decidida, mas cheia de problemas a resolver. Só que com um approach muito diferente do meu, sempre otimista e alto astral, salvo quando as coisas ficavam realmente pesadas. Nessas ocasiões ela desabava por alguns momentos, mas logo estava de volta à luta. Como era de se esperar, me apaixonei perdidamente. Para minha surpresa, fui correspondido.
Na semana em que começamos a namorar, eu vi a pequena Ângela pela última vez. Estava sentado em frente à doceria Senzala, comendo um daqueles canudinhos de côco que acabam com a dieta de qualquer um, quando ela passou pela praça em frente, correndo alegremente, como sempre. Gritei seu nome e fui ao seu encontro. Ela pulou no meu colo, se enlaçou no meu pescoço num abraço apertado, e disse bem baixinho no meu ouvido:
- Vou sentir saudade de você, tio. Fica com Deus e não esquece de mim, viu!?
Fez força com os bracinhos para descer do meu colo, e saiu saltitando para longe.
Percebi, naquele momento, que nunca mais a veria. Porque eu já estava curado do mal que destruía minha alma. E porque a minha mini enfermeira já tinha cumprido sua missão de me trazer de volta ao mundo dos que lutam, dos esperançosos, daqueles que têm planos e sonhos. Enfim, daqueles para quem o futuro tem valor e representa pelo menos a chance de um novo começo.
Desde então, tenho me saído razoavelmente bem na vida profissional, comecei a cultivar hobbies que sempre tive vontade, mas nunca me sobrou tempo, e comprei uma casa, no centro de Itu. Casei com Carla, e temos tantas afinidades que é até difícil de acreditar. Somos muito felizes.
Na semana passada, o ultrassom nos contou que vai ser uma menina. Decidimos que ela se chamará Ângela, em homenagem ao anjinho que tratou do meu coração e da minha alma.
E que me transformou em um legítimo cidadão ituano.

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