terça-feira, 9 de março de 2010

ETERNA SOLIDÃO

No pequeno espelho com cabo em madripérola que tirei de suas delicadas mãos, contemplo o vazio da minha existência. Repasso mentalmente meus últimos séculos, vividos em solidão. Fúria e desespero embaçam minha visão e chego a desejar também sentir a ponta de uma estaca abrindo caminho por minhas costelas.
Estou sozinho novamente. Seguro o corpo de Anna em meus braços, seu busto tingido de vermelho, seu rosto exangue, porém com uma feição suave. Cheguei tarde. O covarde que a aniquilou, o qual prostrei sem vida com um único golpe, jaz a um canto da cripta, seu rosto contraído numa expressão de horror.
Amaldiçoado seja, por ter trespassado tão lindo coração, incapaz de praticar qualquer ato de maldade. E maldito seja eu, mil vezes, por tê-la amado ao ponto de trazê-la a essa anti-vida abjeta onde circulo, atraindo a ira dessa corja de iletrados supersticiosos e irracionais.
Mas eles não perdem por esperar. Agora que minha amada se foi, a trégua acabou. Destruirei a todos, me valendo de todas as formas de tortura e humilhação imagináveis. Com nojo e satisfação sorverei de seus odiosos invólucros a minha subsistência, ceifando as vidas que alimentarão minha morte.
Por quase duzentos anos eu respeitei o contrato que celebrei com seus antepassados. No auge da tensão entre nossos mundos concordamos que eu não mais me alimentaria com sangue inocente. Em vez disso, seus condenados à morte seriam a mim enviados, como têm sido. E não são poucos. Invariavelmente tenho convidados que retenho em minha casa até que meu apetite desperte, o que tem sido raro.
Minha parte no pacto é secar seu sangue e enterrar sua carne, esquartejada, para não proliferar minha espécie. Desagradável que seja me sujeitar a essa dieta à base da escória dessa sociedade inferior, mantive minha palavra todo esse tempo.
Até agora. Doravante, viverão todos temendo minha sombra a espreitá-los, em uma vingança certeira e sem pressa de se consumar. O terror vai dar o tom de seus dias e a insônia vai devorar suas noites.
Apenas uma vez descumpri o combinado. Preferia não tê-lo feito, tamanha a angústia que se apodera de mim ao pensar na garota cheia de vida que conheci há alguns meses, e que agora esfria em meus braços, perfurada impiedosamente como um animal de caça, seus lindos olhos me fitando sem vida ou sobrevida, aguardando pela putrefação, destino desses miseráveis sugadores de leite.
Mesmo temendo uma represália por desrespeitar o trato, eu tinha esperança que eles não ousariam se insurgir contra mim. Não dessa forma. Frustração e ódio me queimam por dentro. Eles estão perdidos.
Foi durante as festividades pelo aniversário do condado que a conheci. Eu fora convidado, para meu espanto, pela primeira vez em muito tempo, a participar do baile anual, de grande tradição na região. Aceitei, receoso, em mais uma tentativa de mostrar boa vontade e me aproximar destas bestas imundas fedendo a nata e suor.
No baile, enquanto eu explicava a árvore genealógica do prefeito a um imbecil embriagado que me chamava de conde em tom de zombaria, Anna surgiu, descendo lenta e suavemente as escadas do salão. Seu longo vestido vermelho-sangue destacava a brancura de sua pele e o loiro de seus cabelos. Suas medidas perfeitas e fartas, realçadas pelos generosos decotes, me seduziam com promessas de noites de paixão e loucura.
Fiz de tudo para cortejá-la. Exibi conhecimento, desfilei riqueza, desenrolei cortesia e fineza ante seus jovens e verdes olhos. Ela pareceu verdadeiramente encantada, em nenhum momento demonstrando qualquer indício de medo ou inquietação.
Fazia tanto tempo desde que eu flertara pela última vez, que, a princípio, confesso, fiquei inseguro. Eu sabia que era impossível ela não me conhecer, e isso, aliado a uma garrafa de Chianti, foi me deixando confiante. Suas maneiras naturais e deliciosas, deixando à vista 32 pedaços do mais alvo marfim a cada gracejo meu, foram inebriando meus sentidos. Convidei-a para jantar em minha casa no dia seguinte. Ela aceitou.
Montes Carrapatos: é dessa forma irônica e deselegante que essa vara de suínos se refere à colina onde está situada minha mansão, construída há quase 600 anos por um jovem rei excêntrico. Os grandes muros de pedra, suas duas torres altas e esguias, e sua localização no ponto culminante da região, são motivo de sobra para fazer estalar as línguas do populacho.
Ela veio, como prometido, e me maravilhou com sua conversa animada, seu jeito ao mesmo tempo feminino e infantil, seus olhares vorazes. Ela me desejava tanto quanto eu a ela, estava claro. Após o jantar nos beijamos e fizemos amor.
Inúmeras vezes nas semanas seguintes ela retornou. Nos tornamos amantes ardentes e insaciáveis. Ela se interessava não apenas por minha virilidade, mas também por tudo que dizia respeito a mim e a meu passado.
Só discordávamos em um ponto. Ela queria se unir a mim na imortalidade, mas eu hesitava em trair o juramento feito ao povo do condado. Seus argumentos eram fortes: não tinha família, era órfã, tendo sido criada pelo irmão mais velho, que morrera há pouco tempo. Sozinha no mundo, dizia que agora tinha a mim.
Depois de três meses dessa maravilhosa cumplicidade, cedi a seus pedidos, ignorei o tratado celebrado com sua gente e a trouxe para meu mundo. Foi com euforia e uma ponta de orgulho que a vi abrir os olhos pela primeira vez após seu coração parar de bater e senti seus caninos salientes enquanto nos beijávamos.
No início ela hesitou em se alimentar, bebendo pouco sangue, e sempre sugado do meu próprio pescoço. Após alguns dias, porém, percebi seus olhares gulosos para as crianças da região. Senti que aquilo nos causaria problemas.
Desde então, no entanto, fomos felizes juntos. Eu evitava me ausentar muito tempo. Sentia que a solidão lhe fazia mal, pois se mostrava distante nos meus retornos. Isso durava poucos instantes, e logo ela voltava a ser carinhosa como antes. Ontem, porém, precisei viajar para tratar de um assunto urgente, sem imaginar o sofrimento que me aguardava na volta.
Adeus, minha doce companheira. Sentirei tanto a sua falta!
Com violência, atiro o espelho longe e o vidro se estilhaça. Arrasto pelos cabelos o animal que matou minha amada. Vou jogá-lo aos lobos, para que não restem nem os ossos de seu odioso cadáver. Mas, o que é esse papel caído a seu lado? Essa parece ser a letra de Anna...

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Meu amado Diogo,
Me perdoe por não ter ouvido seu conselho e ter agido por conta própria, enviando aquele convite ao ser das trevas, sabendo que você estaria fora na noite do baile. Não sou essa pessoa que tem evitado seu contato e ignorado seus apelos.
Você sabe o quanto o amo, e o quanto odeio a fera que executou a sentença que condenou meu amado irmão a uma morte tão indigna. Incumbi-me desta empresa para livrar o mundo deste monstro assassino, mas já não encontro forças para levar a cabo minha tarefa.
Pior, caí em minha própria armadilha, e acabei enfeitiçada pelo diabo, por mais nefasto e lascivo que ele me parecesse a princípio, me enchendo de asco e aflição sempre que se aproximava, com seus séculos de mau hálito disfarçados em boas maneiras, roupas elegantes e perfumes afrodiasíacos.
Pode ser algum poder hipnótico, ou apenas fraqueza minha, mas o fato é que me sinto anestesiada e feliz na presença do grande parasita, e são raros os momentos como este, quando ele está fora, onde consigo pensar com clareza. Sinto horror e vergonha por ter-me tornado algo semelhante a isso. Por ter matado crianças. Que Deus tenha piedade de minha alma!
Venha por favor esta noite à velha cripta, munido dos instrumentos necessários para minha libertação deste jugo odiento. Por nosso amor, livre-me desta maldição, antes que eu afunde ainda mais na lama do inferno. Quero uma última vez observar meu reflexo no espelho.
Eternamente sua,
Anna

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Deixo cair a carta, desnorteado e incrédulo.
Pela primeira vez desde que atingi a imortalidade, sinto grossas e quentes lágrimas escorrendo pelo meu rosto, com seu sabor levemente salgado, há tanto tempo esquecido, vindo beijar meus lábios.

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