terça-feira, 9 de março de 2010

MESMO QUE A MORTE NOS SEPARE

Quando vi Fernanda sentada confortavelmente em nosso antigo sofá de couro marrom, me olhando de uma forma tão curiosa, como se me visse, verdadeiramente, pela primeira vez, recebi uma descarga de adrenalina tão forte que senti estremecer minha alma. Tentei falar, mas senti dificuldade em fazer as palavras cruzarem minha garganta, e um misto de medo e espanto dominou meus pensamentos.
Ela vestia a camisola champagne que eu gostava tanto, a mesma camisola de quando... e, no entanto, estava mais bonita, com uma maquiagem sóbria sobre seu rosto claro de traços felinos, um tom de pele mais saudável do que em muitos anos, as curvas do corpo melhor delineadas do que eu jamais me lembrava ter visto e um brilho sagaz no olhar, que me indicava a diversão que ela sentia em perceber meu embaraço. Era como se, ao constatar minha mente tentando processar tal informação em frações de segundo, isso trouxesse a ela a concretização de um desejo.
Um instante a seguir, meus sentimentos começaram a caminhar por conta própria, alheios à minha vontade, quase que indiferentes à minha própria presença, me proporcionando uma série de imagens de momentos que passamos juntos, acompanhadas sempre de um cheiro ou uma sensação que marcava cada uma das fases de um longo relacionamento... é o meu jeito de registrar momentos: alguns tem um cheiro doce, outros a lembrança de uma música especial, ou a lembrança de estar me sentindo feliz, ansioso, apreensivo por enfrentar alguma coisa nova... e não pude reprimir um sincero “como eu queria te ver” que surgiu espontâneo demais mesmo para alguém na minha situação.
Um sorriso pareceu brincar nos lábios dela, aqueles mesmos lábios que aprendi a amar e a temer, principalmente quando se mostravam finos como naquele momento, mas não deixei de notar que ela gostou de saber disso, apesar de tudo... porque vaidosa ela nunca deixou de ser, independente dos últimos acontecimentos, sempre fez questão de saber o quanto eu continuava louco por ela.
- É a última coisa que eu esperava ouvir, Tiago – disse, sem jeito, revelando uma ponta de rancor.
Eu nunca fora um espiritualista. Pelo contrário, metade da minha vida passei defendendo a ideia de que tudo acaba aqui, neste mundo, com a chegada infalível da última batida desses motores tão frágeis que trazemos dentro do peito. Toda minha convicção se rebelava contra esse reencontro inusitado na madrugada fria, dentro da nossa – agora tão estranha à minha presença – sala de jantar. Os quadros na parede, os discos na estante, até mesmo o tom azul de uma das paredes, fragmentos de um momento de calmaria em nossas vidas. Como a paz se traduz em futilidades, pensei, olhando meu velho tabuleiro de xadrez, ainda arrumado numa defesa francesa, uma das minhas manias. O violão no canto devia estar ainda afinado, afinal não se passara tanto tempo assim desde aquilo...
E, no entanto, não posso negar que me senti muito alegre em revê-la! Percebi imediatamente que, independente de tudo... de tudo que acontecera... Fernanda foi a mulher que sempre amei, que mais perfeitamente representou aquilo que as pessoas chamam de cara metade. Oito anos de casamento serviram para muitas coisas, principalmente para aniquilar sem piedade qualquer espécie de gentileza, de cortesia, entre nós. Todo aquela minha educação que a cativou quando nos conhecemos, toda aquela sensualidade calculada em palavras de duplo sentido que me alucinou quando começamos a flertar, tudo havia se transformado em falsa harmonia. Quanto eu não daria pela cumplicidade do pecado que uma vez compartilhamos, no lugar dessa maldita intimidade que acaba com o romantismo e transforma amantes em sócios.
Mas, ali, tendo a inesperada oportunidade de revê-la depois do vendaval que devastou nosso mundo, que nos afastou ao ponto de não ser mais possível dividirmos um jantar sem que houvesse uma discussão, e que culminou naquela fatídica noite, onde fomos separados da única forma que a igreja entende ser justificável, eu tive que admitir: ela foi a única pessoa que eu amei de verdade. Outras passaram pela minha vida antes e depois dela, algumas deixaram marcas e outras não deixaram nada, nem a lembrança de um nome, nem uma memória, um cheiro, uma cor, uma emoção. Surgiram e desapareceram como assombrações. Outras ainda levaram algo. A maioria não levou nada.
Estava em meio a esse turbilhão de sensações, quando ela resolveu reagir:
- O que você veio fazer aqui? Será que é necessário ainda mais para nos separar?
- Olha, eu não quero ser indelicado, minha cara, mas essa aqui é a minha casa, também. E se vamos ser obrigados a conviver, mesmo após separados pela morte, talvez seja melhor um pouco mais de boa educação.
- Essa deixou de ser sua casa, Tiago, no dia em que você trouxe uma vagabunda para passar a noite com você, na nossa cama.
Ela fez aquela cara de asco que eu conhecia tão bem.
- Eu sei que eu errei, mas minha vida está aqui, tudo que é meu: meus livros, discos, filmes, meu tabuleiro, meu violão, você...
Ela me interrompeu, furiosa:
- Eu não sou sua! Pelo menos disso eu já estou livre!
- Então aconselho que você pegue suas coisas e vá embora, querida. Porque eu não tenho nenhuma intenção de sair daqui.
- Eu não acredito que estou tendo essa discussão com VOCÊ a essa hora da madrugada.
- Bom, podemos deixar isso para uma hora mais apropriada. Estou mesmo cansado.
- Pois vá descansar, querido.
Foi nessa hora que reparei que ela não estava mais usando aliança. Então até isso era diferente agora. Resolvi que discutir com ela naquele momento não levaria a nada. Ela sempre fora mais teimosa que jumento quando empaca, não mudava de opinião por nada nesse mundo.
- Ok, Fê. Vou dormir fora essa noite. Espero que amanhã você esteja mais razoável.
- Vai sonhando. Aconselho você a seguir seu caminho e me deixar em paz, para sempre.
Saí para a noite, que me pareceu excepcionalmente triste. As pessoas na rua, totalmente indiferentes ao meu sofrimento, seguiam seu caminho pela grande cidade. Algumas olhando pro chão. A maioria olhando para dentro de si próprias. Percebi o quanto somos todos solitários nesse mundo, onde companhia é uma invenção patética, para esquecermos que não temos nada nem ninguém além de nossa própria insignificância. Mas quem era eu para dizer isso. Nunca pude ficar sem companhia, sem Fernanda ou sem uma amante.
Reparei então que aquela luz continua ali na esquina. Desde que tudo acontecera, eu me sentia atraído por aquele brilho, mas o evitava, por tudo quanto havia lido a respeito. Não, eu não seguirei aquele caminho. Sem chance. Eu não estou pronto. Em vez disso, sentei num banco do meu boteco favorito, peguei papel e caneta, e comecei a escrever:
“Quando vi Fernanda sentada confortavelmente...”
Eu sei que errei. Eu sei que não deveria tê-la traído. Não dentro de nossa casa, em nossa própria cama. Apesar de não acreditar em fidelidade, eu não a culpo por ter ficado magoada.
Depois de alguns dias vagando e sendo acossado por “amigos” interessados a me mostrar o caminho, eu consegui voltar até ela. Até nossa casa.
Não. Eu não a culpo. Nem pelo rancor que nutriu, nem pelo veneno que utilizou para extravazar esse rancor.
Nem pela falsidade! Por ter chorado amargamente minha morte perante os amigos, os parentes, perante a polícia. Nem pelo desmaio no velório, pela ceninha em frente ao caixão.
Ou por ter escapado sem punição, após ter colocado fim a minha vida.
A tudo isso eu entendo e perdoo.
Eu sei como são as mulheres. Não fui um santo em vida, mas sempre entendi as fraquezas do ser humano. Entendo ela ter me negado o direito de continuar vivendo, após a humilhação que a fiz sentir.
Mas uma coisa ela não poderá me negar.
Eu gosto da vida e não estou pronto para seguir meu caminho.
E, principalmente, eu não quero e não posso para ficar longe de Fernanda, a mulher que eu amei. Que eu amo.
Mesmo que a morte nos separe...

Nenhum comentário: